quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Dores de crescimento

Sentada estava ela mais uma vez. Naquele rasgo de pedras que furavam o mar, até só ouvir o som das ondas nessas pedras e sentir os salpicos salgados com cheiro a mar. Lá se mantinha, de olhos postos no horizonte do oceano. As lágrimas escorriam-lhe pelas faces abaixo.
- O que tens? Pensas no mesmo? Já lá vai! Por que não te ocupas? Já viste o que te é dado? - perguntou-lhe o amigo, enquanto se sentava ao seu lado e perscrutava o mar.
- Oh meu bom amigo; eu sofro... isto é lindo, tudo me foi dado, o mar é lindo, sei como os olhos são postos em mim. Sei bem o que dizes... Nem será só do meu perfume ou do meu sorriso, mas sabes o que eu sinto. Oh! - e voltou-lhe o aperto e as lágrimas encheram-lhe os olhos tornando-os brilhantes.
- Sei... Daí que te diga que já chega. Por favor. Onde está quem eu conheci? Era tudo preto em teu redor, tudo tremia de incertezas, preconceitos e terrores dos mais variados tipos... Mas tu! Tu eras luz e alegria, eras paz e eras guerra!
- E sou. Mas sabes como sempre fui, quem me quebrasse a...
- Tinha tudo. Eu sei! Tu és melhor que isso. Não vês a realidade? Há uma luzinha em tudo o que fazes.
- Eu não sinto nada. Eu só o quero de volta. Nunca quis isto. Sabes que agora vou perder a equilíbrio, não sabes?
- Vais? Porquê?
- Porque eu não sou boa para este mundo feio. Este mundo egoísta e caprichoso! - e cuspiu para o oceano.
- Tu viste que não foi só isso...
- Foi sim. Foi. Eu nunca amei a mais pequena fracção de tudo o que me desejou. Nunca dei sequer hipóteses ao sofrimento de ninguém. Sempre fui acusada de não ter sentimentos, mas foi por tê-los demais. E tu és o meu melhor amigo, sabes disso. Agora morro para aqui.
- És a morta mais linda que já vi.
- Parvo... Por que se foi ele embora? - e a voz embargou-se-lhe ao perguntar-lho.
- Ele foi porque teve medo, já sabes.
- Eu enganei-me vês. Tanto tempo à espera de um príncipe encantado, para depois ele fugir e se cansar de mim. Sinto-me ridícula. Não me ouças mais, sabes que pareço um papagaio agora. É por isso que venho para aqui, porque o mar é belo mas tão chato, que consegue ser infinitamente mais repetitivo que eu. Sempre nas mesmas ondulações, sempre a espetar com as ondas nos mesmos sítios, sempre com o mesmo cheiro, a mesma cor...
- Sabes como nunca és repetitiva para mim. Tudo o que quero é ver-te sorrir, porque tens o sorriso mais bonito do mundo. Quero ver-te feliz, porque a tua felicidade transborda em todos os teus passos e em toda a dimensão do que tu és. Tu precisas de ser feliz, porque a tua felicidade é precisa neste mundo.
-  Agora sou chata e desinteressante. Foi tudo em vão. Por que fui eu burra? Por que delimitei eu limites e barreiras se depois eu própria as fui quebrar?
- Repetias tudo na mesma...
- Sim.
- Pois. Mas não há retrocessos. Como podes tu ainda estar assim com alguém que te faz sentir assim? Alguém que te disse que não te queria, que estava farto de ti.
- Dizes isso assim e sinto-me ainda mais chata! Eu não sou chata e desinteressante, sou?
- Claro que não. No dia que fores tu a chata e desinteressante, então teremos sérios e graves problemas para resolver neste mundo.
- Cala-te. De que adiantaram as muralhas gigantes, defendidas por balistas, arqueiros e dragões cuspidores de fogo, encantadas com feitiços de defesa e protegidas por dentro e por fora se no fim eu própria as destruí? Eu mantive-as durante algum tempo. Mas ele fez-me destrui-las. E eu destruí. Não só destruí como ainda limpei todo o matagal que tinha dentro das muralhas, limpei as ervas e livrei-me de todos aqueles demónios que antes andavam dentro das minhas muralhas a enfeitiçá-las por dentro com palavras vãs e ignorância. Matei-os todos. Eliminei tudo e deixei tudo livre e airoso para ele entrar. Pior que tudo, deixei entrar bem no interior e mostrei-lhe o caminho até ao centro. No centro estava o meu diamante de carne, o meu coração. Ele palpitava mais quando ele lá ia, desde que ele aprendeu o caminho. Às vezes passava algum tempo perto dele e o diamante lá palpitava forte e revigorante. Ele tirava-o lá do sítio, algo que nunca ninguém tinha feito. E abraçava-o, brincava com ele, fazia-lhe festas e sussurrava-lhe coisas bonitas. Eu deixei. Nunca tinha visto algo assim, apesar de na minha mente eu já o ter desejado há muito tempo. Sabia que aparecia esse que tiraria o diamante do sítio dele e o levaria. Que o tiraria daquele sítio limitado e apto a receber os demónios e as ervas. No entanto, fui ignorante. Ele não tirou o diamante dali, não lhe deu o que ele precisava. Os demónios voltaram mais fortes que nunca. Eu tinha o diamante com ele e deixei-o estar, pois os demónios não agrediam nem dominavam o diamante quando estava nos braços dele. Mas na verdade, o medo que ele também tinha dos demónios, mostrou-se superior. E comecei a vê-lo a pousar o diamante no chão. Comecei a ver nele que o medo dos demónios era superior ao amor pelo diamante.
- Sim... E os demónios ganharam.
- Óbvio. Ganharam e fizeram-me sentir ridícula por ter destruído as minhas muralhas por alguém fraco e provisório. O resultado sou eu hoje. De muralhas destruídas, ervas por todo o lado e o diamante perdido. O diamante a receber colo dos demónios e eles a brincarem com ele, a gozarem com ele, a abanarem-no e a chamarem-lhe nomes feios.
- Constrói as muralhas mais depressa!
- Mas tu és parvo? Já não te disse que não é assim que funciona comigo?
- Devia! Se sabes o que acontece e tudo, não é o mais acertado construíres as muralhas depressa?
- Seria! Mas não é só pedir ou querer e já está. A reconstrução é lenta comigo. Os demónios são fortes e estão sempre a mandar abaixo as pedras que ponho em cima. Eles alimentam as ervas que trepam tudo. O diamante está fora do sítio.
- Estou a ficar triste com essa história. Não ligues aos demónios. Já sabes bem o que acho. Lá porque ele teve medo deles, tu não tens de ter também. Todos os problemas que eles causariam podem ser afastados apenas com coragem. Ele teve pouca mas tu tens!
- Não tenho agora. Sei lá. Eu matei os suficientes para que ele chegasse ao diamante e que tivesse paz comigo. Mas não sou capaz de matar todos. Só os eliminaríamos a todos em conjunto e ele desistiu, - ela deu aqui um salto rápido com o tórax e virou-se para o amigo, - Estou a ser ridícula outra vez! Eu é que achei que ele era capaz disso e iludi-me!
- Olha lá! Eu sei de tudo! E ninguém fazia o que fez se não tivesse intenção de algo! Tu não és burra nenhuma e lembras-te bem de tudo, assim espero. Achas que alguém ia brincar com o diamante se a intenção fosse deixá-lo destruído? É que se a intenção inicial dele foi essa, deixa-me que ainda o afogo à tua frente!
- Mas se não foi intuito... É por isso que te digo. Venha o que vier, eu sei que os demónios o assustaram demais. Eles atormentam-no mais que a mim desde sempre. Desde sempre. Eles estão lá dentro dele, sabes. Eu ao menos sei que ao pegarem no diamante, os demónios desaparecem. Só desejava que pudesse ter feito o mesmo por ele. Mas não tive o valor suficiente.
- Queres que me ria? Ele é que...
- Só queria vê-lo mais vezes. Queria que ele soubesse que me deixou o diamante sujo e que nunca lhe tinham tocado como ele tocou. Achas que ele percebe isso? - Perguntou ela com os olhos cheios de reconforto.
- Se queres que te diga nem sei bem, - ela deixou cair a cabeça e o queixo tocou-lhe o peito, ao mesmo tempo que lágrimas começaram a escorrer e a cair no colo - mas acho que sim. Acho que ele percebe como tocou no diamante como ninguém. Ele acha estranho como tão incríveis muralhas se baixaram para ele passar. Ainda por cima muralhas que defendiam um diamante daqueles. Sabes bem o valor desse diamante não sabes? É ele quem vai ter de chorar pelo diamante que deixou à mercê dos demónios e das ervas e não tu, minha querida - e abraçou-a com um braço.
- Queria poder ouvi-lo mais. Sabes que só me lembro de quando ele brincava com o diamante, de quando ele lhe dizia ao ouvido "tenho medo de quando não estás comigo e não sei o que andas a fazer..." Queria ver outra vez o sorriso dele a seguir a ver-me desatar aos saltos no meio da rua, a dançar e a cantar feita tonta. De ouvir as gargalhadas dele. Tenho saudades de quando ele tinha ciúmes e achava que algum outro passaria as muralhas e lhe roubaria o diamante das mãos. Como estava errado. Como não foi em vão. Como é frio e cruel para mim agora.
- Claro, daí que não possas ficar presa a isso!
- Já sei! Já sei isso tudo. E sou maravilhosa e isso tudo! E ele também deve achar o mesmo, que eu vou agora andar aí ocupada a fazer o meu diamante saltar para as mãos de um qualquer. Mas como se engana. Eu não preciso somente alguém que segure o diamante e tenha a coragem para enfrentar todos os demónios. Preciso de alguém que faça isso mas que saiba como pegar no diamante, que pegue da forma que ele nasceu para ser pegado.
- E vai haver quem o trate assim, acredita em ti - e começou a afagar-lhe o cabelo.
- Larga-me! Dizem-me sempre o mesmo. Não vês que as muralhas estão partidas? Elas levam tempo a reconstruir e por muito tempo que levem, vão sofrer quedas e nunca mais ficam as mesmas! Por acaso achas que uma reconstrução de uma obra de arte é igual à obra de arte em si?
- Não...
- É igual. Por isso dá-me tempo. Deixa-me ser monótona como o mar, infeliz como a noite e chorar.
- Eu percebo, nem sabes como percebo... Prometes-me só uma coisa, prometes?
- O quê?
- Prometes que voltas a ser o que eras e melhor ainda?
- Vou tentar. Perco-me sem saber se lhe faço falta. Sem saber se sente que a minha atenção era pura e sincera.
- Quem é que não sente a tua falta depois de te ter?
- Isso é o anjinho bom que me diz, o diabinho mau diz-me que ele não me quer. Nem sei se ele percebe que só o quis perto pelo que ele fazia de bom ao meu diamante. Quando vi os demónios ganharem força em relação ao que ele recebia do diamante, desesperei.
- É impossível saber. Só te garanto que nem sempre as pessoas se afastam por deixarem de gostar umas das outras. E prometes-me o que pedi?
- Já disse que vou tentar.
- Tentar com força?
- Sabes como eu tenho momentos bons. Mas agora quando olho para o diamante e vejo como está todo desgraçado, ainda choro. Ainda me lembra tudo o que passou nos braços dele, todos os episódios. Olho para ele e lembra-me de quando ele nem sabia como pegar no diamante, de como não sabia o que lhe fazer, mas de como foi o melhor ao fazê-lo. Aí foi quando pensei que fiz bem em destruir as muralhas e os demónios. Já não sei o que será. Sei que ficarei sozinha mais o meu diamante, tentando protegê-lo. E acho que ficarei assim algum tempo. Não quero que ninguém lhe pegue tão cedo, vendo-o assim maltratado. Ainda para mais ver que quem o mandou ao chão não se preocupa em pegá-lo e ajudar-me a pô-lo no sítio. Sei que terei uma muralha remendada e que quem a quiser voltar a passar terá muito mais dificuldade, pois o meu diamante não nasceu para ser maltratado. Vou sim, tentar com força - e com isto, deitou-se ela para trás e contemplou as estrelas que iam ficando mais brilhantes. - Vês, as estrelas não se preocupam. Apenas brilham e brilham. Nem os cães, as aves, os rios ou as árvores. A natureza vive e não arranja problemas. Quem me dera saber mais e sentir menos. Gostava de apenas brilhar. Gostava de não ter de pensar que o meu brilho pode chatear este ou ofuscar aquele. E se somos natureza e vida, não deveria ser somente assim?
- Sim... És muito especial, minha querida - e sorrindo com ternura estendeu-lhe a mão, que ela segurou. Ele puxou-a e pondo-a debaixo do braço regressaram pelas pedras até à terra, devagar, enquanto o céu ia escurecendo e ela ia percebendo como o melhor sonho da sua vida tinha acabado e se via obrigada a ter de acordar para o mundo cheio de demónios, sozinha.

1 comentário:

  1. Queria não perceber um terço de tudo; não sentir, sequer, metade deste todo, mas a incapacidade de controlarmos os sentimentos e as dores, assim o proporcionam... Que os nossos diamantes se permitam brilhar outra vez, para nós, para quem nos rodeia, para quem nos merece... E neste desejo, com os meus gritos silenciosos e os meus pensamentos, respiro fundo e tento acreditar ser possível...

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